top of page
Foto do escritorMARCELO COSTA BRAGA

TEKOHA GUAIVIRY - O CORAÇÃO DA TERRA

Atualizado: 30 de jul. de 2020

RELATO PESSOAL


_________________________________________________________________

Para ver o documentário fotográfico produzido no Tekoha Guaiviry CLIQUE AQUI

_________________________________________________________________


TEKOHA GUAIVIRY


RETOMADA DA TRADIÇÃO KAIOWÁ

A retomada das terras pelos índios Guarani Kaiowá, formam a região denominada Tekoha Guaiviry. Essa região está situada entre Amambai e Ponta Porã, Mato Grosso do sul, Brasil.


Um tekoha se denomina pela região onde habitam os Kaiowá. Nessas terras é preciso que tenha uma ligação espiritual com seus ancestrais, sendo assim podem ser livres para praticar suas culturas e tradições. É onde podem exercer o seu modo de ser (Teko) de forma plena.

Nesse trabalho, busco através da documentação fotográfica, feita em outubro de 2015 mostrar valores diários dentro do tekoha Guaiviry, um tekoha de retomada, que por anos espera uma decisão oficial do governo federal que reconheça essas terras já demarcadas desde 1988.


Por alguns anos, indígenas da tribo Kaiowá foram expulsos dessas terras que passaram a ser utilizadas por fazendeiros ligados à industria do agronegócio, apoiados pela bancada ru- ralista estadual e federal. A expulsão forçada, veio muitas vezes em forma de reservas indíge- nas menores que as terras pertencentes anteriormente.

A omissão governamental para com as causas indígenas no Brasil, aceleram o processo de retomada das terras originais por parte dos índios, que se cansaram de tanta opressão de sua cultura.


São vários os tipos de opressão sofridas pelos índios em seus territórios originais. Uma das maiores opressões sofridas, é a midiática. Veículos de comunicação que usam seu espaço com conteúdo de sobra para denegrir a imagem dos índios, ajudam a propagar uma repulsa para com a causa indígena nacional.


Devido a propagação de matérias e notícias de conflitos, é muito comum associar o índio a fatos violentos, porém, deve-se atentar para o fato de que as tribos indígenas do Brasil, estão lutando para não serem extintas enquanto há o avanço de uma indústria irresponsável para com os valores tradicionais do Brasil.

As imagens que seguem, são fotografias feitas ao longo de alguns dias convivendo com os Kaiowá no tekoha Guaiviry.

Apesar de tanta opressão, o que pude ver, foram valores que todos deveríamos aprender. A simplicidade, o respeito ao próximo e a natureza, a apreciação de pequenos momentos e do tempo.

Com essas imagens, agradeço ao povo Kaiowá por ter me aceito e me ensinado sobre o amor.


Gostaria de pedir a quem chegar este trabalho, que reflita sobre as questões indígenas de nosso pais.







Marcelo Costa Braga

_________________________________________________________________________


Tekoha Guaiviry - Mato Grosso do Sul,Brasil


Entre Ponta Porã e Amambai, mas precisamente no Km 35 da rodovia estadual, encontra-se a aldeia Guaiviry, representada pelos índios da etnia Kaiowá, que fizeram em 2011 a retomada de posse de terras demarcadas pelo código nacional de demarcação em 1988. A retomada é de uma área considerável onde vivem aproximadamente 40 famílias.


Minha chegada foi numa quinta feira, dia 26 de Novembro de 2015, de ônibus. Fiz o trajeto de Dourados até Ponta Porã, e de lá peguei um outro ônibus e pedi para o motorista me deixar na aldeia Indígena, que fica na beira da estrada. O motorista, ao se aproximar do local de destino, logo se prontificou a me avisar quando eu teria que descer. Chegando no local de desembarque, desci e vi que estaria sozinho por um tempo, já que o ônibus parou aproximadamente 1km antes do local correto e eu não tinha orientações precisas de onde teria que ir. Saltei na estrada e ali fiquei um tempo, sem saber para onde ir. Passado um tempo, algo em torno de uns 20 minutos desde a minha descida do ônibus, resolvi arriscar uma direção e segui um trecho por um caminho mato a dentro, mas não segui por muito tempo, com receio de que poderia estar indo pro lado errado, uma vez que eu andava e a paisagem não mudava tanto, e resolvi voltar até a estrada e por lá ficar no acostamento até que por sorte, pudesse aparecer alguém para eu me informar. Nada muito animador. No local, não tinha sinal de operadora de telefone celular, o que dificultaria qualquer contato com alguém que pudesse me orientar. Uns 30 minutos se passaram, comecei a assoviar alto, prática aprendida com meu pai, numa das muitas idas ao estádio Maracanã, pra ver se despertava alguém ao redor, fato que fora bastante eficaz. Em alguns minutos, ao longe surgem 2 crianças pelo caminho que eu estava indo mas regressei, meio que desconfiadas, me olhavam de longe, aproximando lentamente os passos e ao mesmo tempo que elas se aproximavam, pela estrada aparece um motoqueiro numa moto tipo scooter, em velocidade baixa, meio que procurado por alguém. Ao me avistar, direciona a moto até meu encontro e ao chegara ao meu lado, diz que estava a minha espera, uma vez que o Matias (representante regional do CIMI) avisara que era possível que eu estivesse por perto.


Após o primeiro contato com o motoqueiro, me apresento, ele também. Ele pega uma das 3 mochilas que carrego, sendo essa a de alimentos que estou levando para os índios em sinal de agradecimento por me receberem em sua aldeia e que foram escolhidos gentilmente pela Sandra, professora na faculdade de Dourados que fez todo o primeiro contato com as pessoas certas para tornar essa ida possível, e que me acolheu por quase uma semana, em sua casa em Dourados, até que o contato final fosse estabelecido. Gostaria de agradecer a Sandra e sua filha Dandara (13) pela hospitalidade e pelas longas conversas que tivemos ao longo desses dias. Colocada a bolsa entre as pernas do piloto, subo na moto e logo sou levado até a entrada de uma fazenda, quase 1 km depois. Não muito distante, mas suficiente para me deixar curioso quanto ao local e a lógica que eu tinha construído em minha cabeça “Indios morando em uma fazenda?” acabando aquele romance que eu tinha construído na primeira infância de que índios apenas moravam em cabanas no meio do mato, isolados. Pois, a realidade Guaiviry é diferente: eles foram expulsos de suas terras que foram ocupadas por fazendeiros locais, com conivência do governo ruralista estadual e federal. Esse impasse das terras, por mais que já tenham sido oficialmente demarcadas pela legislação nacional em 1988, se intensifica ao decorrer dos anos, e quase que numa forma de massacre, que leva lamentavelmente ao

genocídio unilateral feita pelos fazendeiros, ruralista e governantes contra o povo indígena no Brasil, e nesse caso em todo o estado do Mato Grosso do Sul.


Entrando na fazenda beira de estrada, que tem a porteira aberta, e que na entrada o único elemento que identifica o local como uma possível terra indígena é um cartaz com uma foto impressa de um índio com alguns dizeres. Mais tarde ao longo de minha estadia, descubro que o índio da foto era Nisio Gomes da Silva. Cacique local, que fora assasinado por jagunços e que as palavras são dizeres que ele costumava dizer de que a luta pelas terras de há de continuar. Noto que à minha direita há algumas casas de tijolo e telhado, construídas pelos fazendeiros que ale se instalaram por um período e à minha esquerda há um grande galpão. O índio que conduz a moto, me leva pra dentro do galpão, onde avisto uma van de turismo, que levara 8 integrantes de um encontro internacional relacionado à diversos países com problemas sociais, e que vieram ao Brasil e estão passando por alguns estados conhecendo a luta dos movimentos populares, para assim, trocar conhecimento sobre as causas e as lutas e de alguma forma, e assim, expandir a mente em busca de novas maneiras de se combater as injustiças sociais sofridas por cada qual em seu pais de origem, e também, nesse caso, pelos índios.


O intercâmbio é auxiliado pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário), e representantes locais do Zâmbia, Egito, Nagalen (País em processo de independência - Índia), Índia, Estados Unidos, Sri Lanka, Palestina e Argentina expõem dentro do galpão, sentados em círculo, suas angustias diante a opressão que sofrem em seus respectivos países, e assim, cada liderança faz suas devidas anotações para debaterem ao regressarem aos seus países. Genito, liderança indígena, responsável pela articulação na aldeia Guaiviry, escuta todas as historias quase que calado por todo o tempo, deixando a fala para Elson, liderança indígena de outra aldeia no mato Grosso do Sul, que apresenta a luta e o dia a dia dos indígenas locais. As conversas são traduzidas por Matias, pela representante da Argentina e volta e meia por mim, para que todos sejam devidamente compreendidos.As conversas são traduzidas de português para inglês e de inglês para português. Nesse momento, em que traduzia as falas de cada um, percebi a importância da transparência da informação. Era de uma responsabilidade enorme passar a mensagem de uma forma clara sem deixar duvidas.


Toda a conversa, fora levada de maneira informal, mas sempre com um ar de compreensão e muitas vezes de espanto, quando cada qual contava sobre suas causas. Ao final, quando todos já haviam se apresentado e falado sobre suas causas, houve uma pausa para o almoço feito numa cabana improvisada, feita com armação de galhos e troncos secos e lona preta. A comida foi preparada pela esposa de Genito, e consistia em arroz, feijão e frango caipira. Ao fim da pausa, na volta para o galpão, Genito toma a fala. Muito emocionado, por ter tido a oportunidade de ver que todos estavam numa luta comum, de opressão, que muitas vezes é feita pelo próprio estado, Genito agradeceu a presença de todos e desabafou, chorando sua historia, começando pela morte recente de seu Pai, Nisio Gomes, morto por jagunços dos fazendeiros do agronegócio, que o mataram a tiros numa emboscada dentro do terreno da fazenda e levaram seu corpo para dar um sumiço. Nesse momento, Genito se atrapalha na fala em sua segunda língua, o português, e quase que fica incompreensível, mas pelo pouco que pude entender, apenas diz que a morte de seu pai não foi em vão, e que aumentou ainda mais o desejo de justiça pelas terras que lhe pertecem, e que as tradições indígenas irão ser passadas por gerações, custe o que custar até se perpetuar, e que ele perdera seu pai biológico, mas seu pai sol e sua mãe lua, haverão de honrar o sangue derramado em nome de seu povo que já está cansado de tanto sofrer. Ao se encerrar a confraternização, algumas crianças locais que acompanhavam a roda viva, chamam os participantes para uma animada dança tradicional da tribo. Após a dança, todos se despedem, entram na van e partem rumo à Dourados, cidade em que estão hospedados. Nesse momento, me despeço de Matias, que fez toda a ponte com os índios, avisando que eu possivelmente iria passar uns dias documentando o dia a dia deles através de fotografias e breves relatos. Sem Matias e Sandra, nada disso seria possível. Matias, é um amigo de Sandra, membro do CIMI, sempre muito solicito, com uma cordialidade sulista, e muito engajado nas causas populares e de minorias no Brasil, deseja sorte e me diz “ daqui pra frente, é com você.” Nos cumprimentamos brevemente, eu o agradeço por tudo que fora feito até então. Alguns dias antes, tivemos algumas tentativas frustradas de visita em um acampamento indígena de beira de estrada, cancelado por conta das fortes chuvas e uma possível ida minha a Antonio João, cidade onde teria em uma aldeia uma justa homenagem a Marçal de Sousa, mártir da causa indígena no Brasil.


Ao passo que a van se distancia da fazenda, percebo que estou sozinho de rostos familiares ao meu redor, onde já estou cercado por novas feições que misturam um ar de curiosidade e cordialidade com minha presença. Em instantes, muitas crianças se prontificam em pegar minha mochila de roupa e a outra com equipamentos fotográficos. Genito carrega a mochila com os alimentos, e eu carrego uma sacola com uma rede de dormir, emprestada por Sandra. Genito me conduz ate a primeira casa da fazenda, e me guia, porta à dentro, até um quarto vazio que me servirá de hospedagem durante minha estadia. Passamos por uma pequena sala, logo na entrada, onde a moto de Genito está estacionada, protegida da chuva e de possível roubo. Esta sala tem um forte odor de urina de cachorro, que se encontram aos montes por todo o terreno da fazenda, e alguns dentro das casas vazias de móveis em geral. Noto que numa das paredes dessa pequena sala, há uma escrita sobre Nisio Gomes, pai de Genito, morto por fazendeiros. Essa escrita diz “NIZIO GOME/ NOS QUEREMO PEDIMO CORPO” e fora feita com lama, fato que se repete em várias outras casas da fazenda, sempre com escritas reivindicatórias pelo corpo de Nisio Gomes, ou com exigências de justiça pela demarcação das terras em questão. A forma que fora feita, me chama bastante a atenção: Lama, ou seja, terra. Terra essa que desde o descobrimento, está inundada de sangue indígena, que cada vez mais sofre opressões ao mando do capitalismo selvagem, custe o que custar aos índios. Deixo as coisas no pequeno quarto, que por estar desocupado há um tempo, encontra-se bastante sujo, com lama, poeira e fezes e urina canina, deixando um cheiro forte no ambiente, que logo é varrido por uma pequena e simpática índia. Vou até a varanda e inicio um dialogo com Genito, que até então, não sabia quase nada sobre minha pessoa e tão pouco eu sobre ele. Ja estava anoitecendo, e eu não queria puxar a câmera sem antes me apresentar e conversar com a liderança local. Estávamos na varanda, eu, Genito e seu irmão mais novo, um guerreiro, com lança, arco e flecha e cocar, e que fica de vigília durante a noite, junto de Genito, que nesta noite também irá dormir na casa grande, apesar de ter na parte próxima ao rio do território, uma cabana onde reside com sua esposa e um dos seus filhos. Logo entendo o motivo deles estarem na “casa grande” na entrada da fazenda. Esse parte, por ser na entrada do terreno, ja serviu de porta de entrada de fazendeiros que vinham ataca-los. Assim, podem previnir-se de qualquer possível ofensiva, além de também, por ser uma espécie de liderança por seus conhecimentos e falar o português, Genito é quem em uma eventual ocasião de necessidade, dialogará com quem chega por essa entrada, como no caso de uma das noites em que estive na aldeia, de uma menina índia, que prendeu seu pé entre a correia da bicicleta e a roda, abrindo-lhe um feio corte pouco acima do tornozelo. O acidente acontecera as 15h da tarde e o serviço de atendimento de Amambai, cidade mais próxima(45m) somente chegara para atende-la as 22h. Essa casa serve como que um ponto de referência, uma vez, que adentrando mais no terreno, o mato alto, leva à caminhos que quem não conhece o local, se

perde facilmente e pode ficar por alguns minutos andando a esmo. Esse atraso no atendimento, faz parte dos constantes boicotes aos Indios locais, que tem seus direitos como cidadãos sempre dificultados. Um outro fato bastante relevante é relacionado a energia elétrica do local, que por conta de um raio, durante uma forte chuva muitos dias antes da minha chegada (estima-se quase 2 meses), cortou a rede elétrica do local, e que até então, não fora solucionado o problema, mesmo com a pedida de Genito junto à companhia local, além de um pedido à funcionário, que fora fazer a marcação da luz. Genito, apelou para a Funai, para que a mesma fizesse contato com a companhia solicitando o restabelecimento da energia do local. Além da falta de energia elétrica, há também a falta de água, uma vez, que sem energia, a bomba não funciona e não consegue puxar a água. A única água do local, é proveniente de um poço artesanal ou é buscada no rio corrente, que corta as terras e que fica mais perto das cabanas, a uns 20 minutos andando desde a entrada pelo portão. Algumas famílias foram estrategicamente distribuídas pelas casas de fazenda, para em um possível problema, alertar a todos que ali estão, assoprando os apitos, não concentrando todos em um único local, o que facilitaria o massacre no caso de uma ofensiva.


Na minha primeira noite no tekoha, aproveito para conhecer mais de cada um que ali está, então, armo a rede que iria dormir, e fico por horas falando sobre o local e de mim e minhas origens, além da intenção com a fotografia. No início da madrugada, todos se retiram, e fico só, na varanda, pronto para dormir. Pego no sono rapidamente, porém o sono é interrompido cerca de uma hora depois, pelo frio e pelos mosquitos. Penso comigo, que será melhor dormir dentro da casa, no chão duro e com odor forte do que brigar a noite inteira numa luta perdida contra os mosquitos e o frio. Quase que sonâmbulo, faço o trajeto no breu até o quarto que certamente serviria de cenário daqueles filmes de terror americanos. Adormeço novamente.


Cedo pela manhã, acordo num pulo, animado pra começar minha pesquisa. Estou ansioso. Pego a mochila com equipamento e vou direto ao galpão, que também serve como escola local. Não tomo café. Aliás, refeições por aqui, não são todos que fazem na regra de três “café, almoço e janta”. Muitos fazem apenas uma refeição diária, a base de arroz puro, na maioria das vezes. Água também pelo que noto, não bebem tanto quanto deveriam. Alguns, quase não bebem água ao longo do dia. Acho preocupante esse fato. Na escola, são passados os valores indígenas e nela todas as crianças estão vestidas com adereços indígenas e cocar. aprendem a língua local Kaiowá, escrita e falada, aprendem o ritmo dos instrumentos e das danças, cantam, treinam a pontaria com o arco e a flecha. todos aprendem as tradições de uma forma participativa, as cadeiras e mesas que ali estão, estão organizadas quase que no formato em “U” para que todos possam olhar entre si, e ter uma visão panorâmica de todos, maneira adotada por Genito para que ninguém olhe para as costas de ninguém, assim, na hora de confrontar alguma autoridade ou inimigo com argumentos, possam olhar nos olhos, sem medo de se sentir inferior, mostrando que todos são iguais, olhando-os nos olhos. O método de ensino e liderança, se assemelha mais com um método horizontal de compartilhamento de conhecimento, de informação e conhecimentos. Todos são muitos solícitos entre si e com quem os visita. Há um entendimento fantástico e um direito sagrado de criança ser criança. Não são impostos castigos e punições nesse método de ensino. Há muita harmonia entre todos de todas as idades, num senso comum de coletivo, independente da idade. Todos ali fazem parte de uma grande família unida. Até mesmo pelo tanto que já sofrem, não encontram motivos para ter pequenos problemas internos como a falta de compreensão. Sabem que precisam estar sempre juntos para existir, tanto numa possível reivindicação de causa, quanto num plantio, numa colheita, numa missão, numa brincadeira. Vi por parte de todos um suporte de incentivo à todos que tentam progredir. Não notei uma necessidade de se apontar o melhor ou o pior em

determinada função ou tarefa. Cada um se destaca de alguma maneira e quem sabe mais, tenta passar os conhecimentos a quem não sabe tanto.


A escolha da aldeia Guaiviry como objeto de estudo foi dada pelo comprometimento da aldeia em manter as tradições indígenas, que ao longo do tempo, principalmente no Mato Grosso do Sul, vem se misturando com a cultura e tradições dos “ brancos”, perdendo-se o elo com os ancestrais. Em Amambai, por exemplo, há uma comunidade indígena local que se perdeu há mais de 20 anos, sem passar os ensinamentos e tradições aos mais jovens. Hoje é comum ver por lá igreja evangélica nas terras indígenas, frequentadas pelos próprios índios. Na aldeia Guaiviry, há essa busca das tradições e valores que foram passados por gerações. Há outras aldeias por lá com esse resgate, porém nesse momento, não foi possível o contato.


Apesar das lideranças, essas geralmente assim chamadas e dadas as condições aos índios que falam português, todos reconhecem que a real liderança de uma aldeia é a liderança espiritual, exercida pelos remadores da aldeia, que todas as noites pedem por algo em específico e conectam o mundo espiritual à aldeia. Muitas das vezes, nas rezas, pedem pela paz de seu povo e agradecem pelas terras que se tem. Quando reivindicam por ações contra seus inimigos, pedem que a própria terra lhe ofereça o troco. Sejam por inundações, pragas, terremotos, raios, doenças pelo alimento contaminado pelo agrotóxico que eles próprios produzem. Pude presenciar um ritual, com autorização do rezador local. O indígena mais antigo e de uma saúde invejável. Aos 97 anos, ainda trabalha no roçado, plantando acatando milho, e a noite segue a tradição rezadeira, madrugada a dentro. Não falam português. Achei fantástico o fato de se manterem por anos dentro de suas tradições e espero que as futuras gerações percebam a importância disso, até mesmo para um momento de ataque inimigo, pois se falarem português, facilmente serão compreendidos pelos opressores, que os induzem exatamente para que isso aconteça. Quanto mais similar à cultura branca, mais fácil de serem dominados e inexpressivos. Ao se manter a língua indígena, gera confusão aos que não são familiarizados com a mesma, assim, pode-se impor com mais sabedoria e exclusividade de seus interesses seja qual for a situação, irá confundir o opressor. Estamos na parte das cabanas próximas ao rio e Genito nos senta ao pé de uma árvore, que nos da sombra para uma conversa intermediada por ele entre mim e o rezador. Eu não entendo o que ele fala, ele não entende o que eu falo. Cabe a Genito essa troca de informações mutuas. Explico meu motivo presente, de querer documentar em fotografia o ritual de reza que acontecerá em breve. Falo da importância de se ter registrado as tradições como resgate da cultura e preservação da mesma para as futuras gerações. Genito traduz, com uma paciência e uma fala mansa, em sua língua Kaiowá. O rezador, evita-me olhar aos olhos, focado somente em Genito ou num olhar cansado já, ao longe, ao que emite apenas pequenos sinais sonoros em sua língua local, sinais esses que eu tomei a liberdade por tradução minha mesmo que seria algo do tipo “uhum, prossiga”. Após Genito explicar tudo, há um breve silêncio em frente a cabana em que o rezador mora e a cabana que serve de cozinha comunitária, onde sua mulher prepara um antídoto feito de ervas para uma criança febril, que aguarda ao lado de forasentada ao colo de sua mãe. Essa parte da aldeia, com cerca de 10 cabanas fica perto do rio, ponto estratégico para a busca de água, utilizada nas tarefas diárias, como cozinha, higiene pessoal, soros e antídotos. Confesso que estou apreensivo quanto à autorização, pois tentei por diversos momentos cruzar o olhar com o rezador. o seu silêncio pra mim, dura uma eternidade. Estou ansioso e eufórico por dentro, por estar prestes a presenciar meu primeiro ritual de reza indígena, nem que seja apenas como observador, se não puder fotografar. Mais alguns instantes, a quebra do silencio é feita, pelo rezador. Dessa vez, o até então silêncio, é preenchido por uma fala gesticulada de aproximadamente 10 minutos ininterruptos, em língua

Kaiowá, que aumentou ainda mais minha ansiedade, pois não entendia nada do que estava sendo falado, e os gestos feitos, não me ajudavam em nada para a compreensão do que estava sendo dito, apenas um único momento, em que sacudiu o dedo negativamente de um lado para o outro. Eu na hora concluí que não seria autorizada a fotografia. Me deu um certo desânimo, e minha mente pensou longe nessa hora, perdendo um pouco da atenção e a busca pra tentar decifrar o que estava sendo falado. Pouco tempo depois, ao concluir sua fala, vem então um breve silêncio da parte de Genito, que desde minha chegada, tem andado ao meu lado sempre que possível, junto de seu sobrinho Uslein de 13 anos, que me ajuda com absolutamente tudo que eu preciso. Uslein frequentou a escola dos brancos até o sétimo ano, nos anos que não morava no tekoha Guaiviry, assim, fala um belo português o que facilita minha comunicação com os demais da aldeia. A demora de Genito ao me responder se deve à organização mental que ele fizera para me dar o recado da forma que lhe foi passado. Por quase outros 10 minutos, talvez um pouco mais, por tentar achar palavras e maneiras corretas de me dizer a mensagem, Genito me explica o que seria pedido durante a reza dessa noite, feita pelo rezador, sua esposa e outras pessoas que irão se juntar. Todos irão pedir pela manutenção da paz para os povos indígenas da região, agradecer a terra fértil que está podendo desfrutar, pedem por saúde à todos que ali estão para que possam recuperar suas terras roubadas, e que com isso a alegria da comunidade voltará a ser notável. - Vale atentar ao fato, da tristeza local ter tomado conta, colocando assim a tribo dos Guarani Kayowá como a maior tribo com taxas de suicídio do Brasil. Muitos índios desistem da luta, desesperançosos com os anos de luta e o retrocesso de seus avanços, ligados ao massacre dos fazendeiros apoiados por bancadas governamentais ruralista, que oprimem de todas as maneiras as causas indígenas, chegando ao fato, de alguns índios terem suas terras férteis tomadas, sem ser dada qualquer opção aos mesmos, e que em certas regiōes, além de tudo, o comércio local, unidos e fechados com a causa dos fazendeiros (por motivos óbvios) se excluem de qualquer transação financeira de venda e compra de artigos de/para índios. Imagine agora a gravidade do problema das terras em território nacional, além do racismo enfrentado pelos índios, que eu pude perceber que é MUITO forte, num almoço que fiz com Genito em Amambai, e que nos era direcionados olhares fulminantes, quando fomos até a FUNAI, carregar nossos celulares, e no meu caso, baterias da câmera e computador, pela falta de energia e omissão do órgão competente para que isso fosse resolvido. - As rezas dessa noite serão fortes e direcionadas até meia noite exclusivamente ao povo do tekoha Guaiviry, sendo iniciado o ritual as 19h da noite. Genito me explica que fui autorizado a acompanhar o ritual até meia noite, e que depois, de meia noite às 5 da manhã, iriam se iniciar as rezas pedindo que a terra desse o troco em todos aqueles que os oprimem, e que essas rezas seriam mais fortes, e por questões ideológicas, não seria possível fotografar o momento, pois precisaria de muita concentração, e por tudo isso ocorrer dentro da cabana do rezador, num breu quase que absoluto, apesar da luz da lua (mãe) e das estrelas (filhos e soldados) e estrelas cadentes (quem a vir, saber que algo no futuro breve irá acontecer, por isso deve-se pedir prosperidade e força positiva ao avista-las. As cadentes, mostram um ponto de origem e prosperidade/ movimentação, saindo de um estado de inércia de alguma situação, segundo a crença da tribo). Eu teria que utilizar a luz de flash da câmera ou a luz continua da lanterna que eu levei comigo. Optei pela luz de lanterna, por assim poder ter uma luz pontual, sem que iluminasse todo o ambiente, direcionando assim o olhar e a fotografia para o momento exclusivo da reza, não perdendo a atenção em outro assunto. Ambas as luzes, da lanterna e do flash, são luzes fortíssimas num breu, sendo assim, atrapalharia sim, um pouco da concentração necessária no momento, o que foi autorizado na primeira parte do ritual de reza. Que teve inicio numa quinta feira, que segundo as tradições locais, é quando 14 portas do céu se alinham e se abrem, podendo assim fluir de maneira orgânica para uma conversação entre o humano e o divino.


Ao se iniciar o ritual, escolho um canto no ambiente para nos primeiros instantes observar tudo que estava acontecendo. De início, aguardo no lado de fora, escutando apenas a sonoridade feita por falas Kayowá e sons emitidos por chocalhos. Deixo-me ser contagiado pela magia do momento de muita força espiritual, e me tomo adentro da cabana. Uma vez dentro, a vibração se intensifica e procuro me instalar e continuar por um período com essa observação. São três pessoas, além de mim, no ambiente. O rezador sentado em sua rede, sua esposa, que o auxilia ao seu lado, sentada no chão, e mais a direita sentada ao chão, escorada na parede da cabana feita de galhos finos de arvore, uma outra mulher de idade, que em transe, de olhos fechados, segue o ritmo dos chocalhos e da reza. Começo a fotografá-los, um pouco receoso de estar atrapalhando o momento, apesar de ter sido autorizado, por estar direcionando uma luz forte da lanterna em direção aos seus rostos. Faço poucas fotos no inicio pra saber se haverá algum tipo de incomodo ou reclamação por parte deles, ou mudança de ideia, quanto a minha presença, fato que não ocorre. Aos poucos, chegam mais três pessoas, em intervalos de tempo curto. Dois adultos e uma criança, essa que mais me chamou a atenção, pois os novos adultos que se juntaram a nós, tinham aparentemente uma idade de uns quarenta e poucos anos, o outro aproximadamente uns vinte e poucos e a criança beirando os 10 a 12 anos. Me enchi de esperança ao ver que se depender deles, a tradição irá continuar por anos. A reza dá sequência, e não para com a chegada dos novos membros, em alternância de ritmos e dizeres em língua Kaiowá, porém, o que não se altera é a concentração e a intensidade com que todos praticam suas rezas, mesmo com a luz de minha lanterna sendo direcionada aos seus rostos volta e meia, ação que eu repetia sempre que buscava uma imagem. Ligava a lanterna, direcionava, achava o foco e a medição da luz que queria, fotografava, e desligava a lanterna, respeitando a escuridão sempre que possível. Algumas horas se passaram dentro da cabana, onde pude me movimentar com muito cuidado, buscando variações de ângulos e assuntos. para melhor representar com imagem esse ritual. Confesso que tive muita dificuldade pela responsabilidade de registrar uma tradição tão importante. Notei que de todos que estavam ali presentes, apenas um dos rezadores estava com cocar e trajes indígenas para a ocasião. O cocar, inclusive era uma adaptação feita pelo mesmo, com influências do mundo branco capitalista, onde em sua parte frontal e central, tinha um adorno de uma parte de uma bolsa protetora de óculos Ray-Ban. Perguntei no dia seguinte o motivo da falta de vestimentas por parte dos anciões e o motivo do Ray-Ban, e tive como resposta algo plausível de que o que importa é a reza, não as vestimentas e que o fato do remendo com Ray-Ban, é algo sim fruto das misturas de culturas indígenas e não indígenas, assim como nós dos grandes centros sofremos diariamente influências de outras culturas, assim como escutar músicas americanas, por exemplo. Este é um fato a ser estudado sempre: A mistura de tradições, quase que inconsciente. Muita energia está envolvida no momento, confesso que em um determinado momento, desligo meus equipamentos e fecho os olhos para me concentrar em tudo aquilo que estava acontecendo e relato que estar em silêncio apenas absorvendo, tem uma força muito maior que eu seria capaz de traduzir com imagens para aquele momento todo. Minha primeira vez num ritual de reza indígena. Momento que fora surpreendido pelo barulho de uma moto velha, que se aproximava do local da reza, e que me chamou a atenção. Quem seria que se aproximava do local, que estava totalmente isolado? Saio da cabana, direciono a lanterna na direção da moto, aceno positivamente e cordialmente e me aproximo. Chego perto, e noto que é o mesmo índio que me resgatara na beira da estrada quando cheguei à aldeia, e que me diz que esta se iniciando na parte frontal da fazenda, a 20 minutos dali andando, ou uns 5 minutos de moto, uma tradição cultural das crianças com uma roda de dança, em torno do rezadouro instalado na entrada da fazenda. Dou-me por curioso, recolho meus equipamentos no interior da cabana, e saio dali, deixando-os em suas rezas agora com maior concentração ainda, e vou em direção das crianças. No caminho entre a cabana e o galpão, na moto, vou-me em silêncio quase que absoluto, tentando entender mais um pouco do momento, deixando o silêncio me ocupar. Chegando no local da dança, o ambiente já me é familiar. Aquele mesmo galpão da minha chegadaNo local, um breu também. Tento algumas fotografias com flash da câmera, porém, minha cabeça está totalmente voltada ao momento que passei no interior daquela cabana de reza. Desligo a câmera, guardo-a em minha mochila, me aproximo de Uslein, que está por perto, explico um pouco pra ele sobre as técnicas fotográficas, uma vez que ele é bastante curioso em aprender as mesmas, e sempre que possível o ensino. Passam alguns instantes, me despeço de Uslein e sigo em direção a casa. Lá esta Genito, como sempre, na varanda, conversando com sua mulher, uma outra mulher que eu não reconhecera pela escuridão, e um de seus filhos. Cumprimento todos, falo brevemente com Genito, agradecendo pela oportunidade que ele me oferecera de presenciar o ritual das rezas, deito no chão da varanda, com a cabeça voltada para as estrelas e deixo que Genito e os demais sigam sua conversa em língua local. Me encanto com o fato de eu não estar entendendo nada daquela conversa harmoniosa, que prefiro não interromper por nada. Caio no sono ali mesmo, não antes de presenciar o movimento de uma estrela cadente, observando o céu estrelado, que com certeza, há muito mais sabedoria celeste que eu, criado em uma grande cidade urbana, jamais vou compreender. Sem dúvida a natureza é mais sabia que nós. Não a toa, ela tem um poder divino.


Na manhã seguinte acordo cedo e pra minha surpresa, está chovendo bastante. Sou acordado pelo barulho estrondoso de um raio que parece ter caído perto. Entendo agora que com certeza, a falta de luz é uma constante na região, pois os raios caem com uma constância alta. Cheguei na aldeia num período de fortes chuvas. Durante toda minha estadia, apenas em dois dias, não choveu o dia inteiro, dando pequenas brechas de sol, de vez em quando. Na tarde que segue, aproveitando o temporal, dou início a uma breve conversa com Genito que me explica pacientemente sobre as tradições do tekoha, numa espécie de entrevista improvisada. Nessa entrevista, procuro fazer algumas perguntas simples relacionadas ao dia a dia e crenças por parte dos índios Kaiowá, uma vez que no meu breve tempo na aldeia, não será possível presenciar grande parte dos costumes local. Ao passo que continuamos a entrevista, Genito me avisa que as crianças, assim que parar a chuva irão até o rio para brincar, aproveitando o volume de água. A chuva continua caindo o dia inteiro, o que deixaria esse episódio do rio para um próximo dia, porém, quase que ao anoitecer, a chuva dá uma trégua, suficiente para animar algumas das crianças à ir até o campo de futebol brincar. Pego a câmera e vou junto, numa tarde divertidíssima em que o futebol era apenas detalhe. A bola estava pesadíssima, coberta de lama e o solo barroso, estava muito escorregadio, fato que levou a muitas gargalhadas por tombos incontáveis que todos tomamos ao tentar correr e chutar a bola. A noite chega rápido, nos recolhemos e nos despedimos, para na manhã seguinte nos encontrarmos no galpão escola.


Após a aula do dia, Uslein me informa que hoje as crianças vão ao rio com Genito, para buscar água, aproveitando a pausa da chuva. Me junto ao grupo e caminhamos pelos caminhos traçados pelos campos de mato alto, que nos conduzem até o trecho do rio que corta a fazenda. Lá chegando, observo que as crianças conhecem muito bem o local, uma vez que dão saltos ornamentais em pontos estratégicos, onde a água me atinge no máximo até a cintura. Fazem isso sem medo algum, com uma segurança de quem conhece o local. Ficamos por horas no local, nos divertindo, na maior parte do tempo nos comunicando por sinais, uma vez que fora Uslein, nenhuma das crianças fala o português a ponto de nos entendermos. Essa experiência me fascina. Me mostra mais uma vez que o olhar é uma grande comunicação e ele

dificilmente omite as emoções. Deixo todas as cenas acontecerem naturalmente, tentando captar a intensidade de cada momento e a espontaneidade infantil, que naturalmente me guiará perfeitamente ao registro do que aquele momento significa no dia a dia da tribo. Passo um bom tempo fotografando o episódio e quando as crianças se cansam de brincar no rio e se recolhem de volta em direção as suas casas, aproveito o momento para relaxar e também desfrutar daquele rio sem a pressa que estou habituado a ter, quando estou na cidade grande. Fazer isso, faz parte de experimentar a vida e o tempo do lugar. Faz parte do entendimento de que cada povo tem seu tempo e para melhor entende-lo, é preciso vive-lo. Já é quase final de tarde, tenho que voltar até a casa grande, onde estou alojado, separar meu material, pois vou dormir em um hotel na rodoviária de Amambai, pra conseguir recarregar todo o material eletrônico. O ônibus passa sempre ao final da tarde, quase que pontualmente, e tem que esperar na beira da estrada para que se pare.


Ao chegar em Amambai, vou direto para o hotel, que já tinha escoltado na minha ida até a FUNAI. Escolho esse pela proximidade com a rodoviária e a facilidade de chegada, uma vez que estou com bastante equipamento fotográfico. Apesar da proximidade entre Amambai e a aldeia, uma viagem de cerca de 45 minutos feita de automóvel, me impressiono com a enorme falta de conhecimento por parte de seus habitantes em relação à causa indígena. E os poucos que tem conhecimento, na maior parte das vezes estão cegos pelo preconceito direcionado aos indígenas. Deixo meus equipamentos carregando e vou até o mercado comprar alimentos, pois ficarei 2 dias no hotel, porque além de carregar os equipamentos, no dia seguinte tenho que resolver pendências como a minha passagem de volta para o Rio de Janeiro. O mercado fica na parte de baixo do hotel, que aliás, pertence ao mesmo dono. Vou como estou. Roupas sujas, com muita lama devido aos dias seguidos de chuva. Faço as compras e volto pro hotel, afim de começar a escrever esse texto. Faço isso até minha mente atingir a exaustão e caio no sono.


No dia que segue, logo ela manhã, resolvo com meu irmão as pendências que estava tendo para a compra da passagem de volta para o Rio de Janeiro. Ele me ajuda porque durante meu período na aldeia, estive sem acesso a internet e telefone, assim ele providenciou pra mim uma data de volta e meu itinerário que teve que ser mudado quase que por sorte por um erro grotesco da companhia aérea que mudou a data do voo e não me informou. Burocracia resolvida, tenho que fazer hora para pegar ao final da tarde o ônibus que me deixará novamente na aldeia. Resolvo caminhar no entorno da região, conversar com o atendente do hotel, sentar numa venda e falar com os funcionários. Prática comum em minhas viagens, que me ajudam a entender a visão de quem ali habita em relação tema que estou documentando. Como esperado, percebo uma intolerância fortíssima em relação aos índios. O ódio é quase que unanimidade. Palavras opressoras proliferada por pessoas que provavelmente preferem ignorar o assunto e repetir que os índios nada tem a acrescentar à eles, e que somente atrasam. Destilam toda a incapacidade de empatia contra os índios. As conversas me dão um embrulho no estômago, mas acho fundamental manter o diálogo. Na maior parte do tempo, deixo a pessoa falar, quieto, e somente ao final, eu me apresento como fotógrafo documentarista, cobrindo por conta própria a pauta de resgate da cultura indígena da região, o que para a minha não surpresa, ouço comentários lastimáveis como “Por que um rapaz tão inteligente e bonito como você perde seu tempo com isso?”. Alguns até se dispõem a manter a conversa e se mostram curiosos, querendo saber principalmente o que me trouxe até ali. Isso me deixa mais confortável, porque apesar da incompatibilidade de ideais, acredito que toda conversa é válida. Me surpreendo com uma vendedora de pastel, que começou com um discurso de intolerância à causa, mas ao me apresentar como alguém que está a favor da

causa, se abriu e disse que apenas repete o que é que chega até ela nos noticiários. Sempre que escuta sobre índios, há relatos de violência e mortes, Invasões de terra, entre outras noticias de uma mídia conivente que tenta desarticular a legitimidade de um povo e suas tradições. Talvez essa conversa tenha sido um combustível a mais para dar sequência no trabalho que estou tentando desenvolver junto aos índios do tekoha Guaiviry, mostrando seu dia a dia e a simplicidade de uma cultura que está longe do capitalismo selvagem. Repito que durante o período que fiquei, não me senti ameaçado de forma alguma, pelo contrário. me senti vivo de corpo e alma, por tamanha liberdade que tive. me sinto muito mais ameaçado andando pelas ruas do Rio de Janeiro, onde moro. Já está quase na hora de partir, me despeço, agradeço o lanche que comprei que consistiu em uma comida nada saudável: pastel e refrigerante local. Talvez seja esse o progresso que muitos defendem como ser evoluído e civilizado. Vou até o hotel, pago minhas contas, pego meu material, e vou até a rodoviária. Lá noto a presença de alguns índios, o que me enche de alegria. Entro no ônibus, aviso ao motorista que descerei na aldeia, no meio da estrada, no KM 35. A reação do mesmo, nas três vezes que fiz esse percurso ao longo da minha estadia foi sempre a mesma: Uma mistura de espanto e preocupação comigo. “Você sabe que ali é uma aldeia indígena? Cuidado! Eles podem fazer alguma coisa com você”. Nas três vezes, apenas sorrio e agradeço na hora de saltar do ônibus.


Essa necessidade que tive de ir até a cidade durante a minha estadia na aldeia, era algo que no inicio eu estava encarando como desagradável. Queria poder ficar apenas na aldeia, porém, foi importantíssima a situação, que pode me dar uma visão expandida sobre a real situação da região.


Chego na aldeia, com minhas mochilas e algumas sacolas de compras que fiz, mais uma vez como forma de agradecimento por me permitirem mais uma vez de estar ali. Para minha surpresa, alguns dos índios ficam muito felizes com minha chegada, e disseram que achavam que eu não voltaria, apesar de ter informado que sim, eu voltaria.


Alguns dias se passaram na aldeia, e eu não pude dar sequência nos relatos, salvando a bateria do computador para passar o material fotográfico para o mesmo quando preciso, e também não queria voltar até a cidade. Sigo pela aldeia, no dia a dia, fotografando. Cada dia mais familiarizado com os rostos que me cercam, que me deixa muito a vontade para registrar os momentos vividos, quase que naturalmente.


Chega o dia em que tenho que voltar até Campo Grande, numa longa viagem de ônibus de quase 10 horas, devido mas chuvas e paradas. O ultimo dia, sempre é o dia mais difícil pra mim. É o dia de um até logo e muito obrigado. Tenho uma longa conversa com Genito, que apressado, ao me ver, pede para que eu traduza uma carta que ele acabara de receber e que está escrita em inglês. Sento com ele numa cabana improvisada como cozinha, o fogo está aceso para espantar os mosquitos. Genito está apreensivo quanto ao conteúdo da carta. Aviso para ele que é uma carta enviada pelo comitê de direitos humanos das Nações Unidas. Leio a carta, o que faz o temo quase que passar num piscar de olhos. Seu conteúdo me dá esperanças quanto a causa indígena e suas lideranças que estão juradas de morte, inclusive, Genito. Ao menos, a comunidade internacional já está alerta quanto a necessidade e caráter de urgência quanto a preservação da paz e das vidas de todos os índios, que por direito constitucional, estão decididos à não ceder sua cultura aos não índios. O conteúdo dessa carta, eu publico juntamente ao material fotográfico produzido por mim nessa breve estadia no tekoha Guaiviry e que seguem anexadas à este meu relato.


À todos os Kaiowá, à todos os índios do Brasil e do mundo, à todos que defendem suas causas e fazem o possível em suas vidas para que se respeitem as nossas raízes: “Átimã” - Obrigado (Me perdoem a grafia que é capaz de estar errada)

Marcelo Costa Braga







FOTOGRAFIAS COMPLEMENTARES AO TEXTO:


56 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page